Desafio
Desafio a quem por aqui passa , a interpretar esta imagem !
Agradecia que enviassem os vossos textos para tozribeiro@gmail.com
Desde já , o meu muito Obrigado !
(Aguardando...ansiosamente)
O avô
-Avô é tão bom mexer na areia.
-É sim meu neto.
-O avô também brincava como brinca comigo?
-Bem no meu tempo, com a tua idade tinha de ir para o mar ajudar o teu bisavô, porque éramos pobres, mas o pouco tempo livre que tinha, fugia e vinha para aqui escutar o mar, ver os búzios e as conchas.
-E havia muita gente na praia, avô?
-Não, naquela altura só os pescadores, depois é que isto foi enchendo aos poucos, mas agora no Inverno estamos bem, só os da terra é que aqui vêm.
-Tenho fome avô…
-Então vamos para casa lanchar que não tarda estão aí os teus pais.
Por: Wind, do WebClub / Words
Sombra salgada
Naquele fim de tarde, António, velho pescador, hoje definitivamente em terra, levou o neto a passear.Irresistivelmente, os seus passos levaram-no a pisar a alcatifa solta e movediça que, durante anos a fio o conduziu ao arado com que lavrava as ondas em busca do pedaço de pão com que enganava uma fome ancestral.
Deitou-se, com a criança ao lado, enquanto afagava a areia, com olhar absorto, perdido sabe-se lá em que recordações. Talvez naquela noite escura, de mar revolto e traiçoeiro, em que a frágil embarcação soçobrou, quase o arrastando para o fim do escuro abismo que enfrentava diariamente.Sobreviveu, agarrado a um pedaço de madeira, com o desespero de quem quer conservar o que lhe resta: aquele sopro de vida, madrasta e sofrida, mas irrevogavelmente sua.
João, o neto, olhando curioso o chão:
- Avô António, o que é isto escuro que está aqui na areia?
- Escuro? Ah! É a sombra do avô.
O miúdo, pegou numa pontinha de areia, esfregou-a entre os dedos. Em seguida levou um dos dedos aos lábios.
- A tua sombra é salgada, avô António. Será porque apanhaste muito sal quando andaste no mar?
- Não sei, João. Se calhar, foi mesmo isso.De tanto sal que o vento me trouxe, até a minha sombra ficou salgada.
-Que giro, avô António. Quando for grande, também quero ser pescador, para depois também ter a sombra salgada.
A criança nem sequer reparou que naquele rosto tisnado, uma grossa lágrima deslizou ao longo da ruga mais cavada, caindo, de mansinho na areia da praia.
Mas soube-lhe muito bem o abraço apertado que o avô lhe deu. Sem saber que a força que ele trazia, nascia do sonhar um futuro diferente para aquela vida que estava no seu início.
- João, tu vais mas é estudar, ler os livros, fazer as contas, para não teres que chegar a velho, como eu, e só teres de teu, uma pequena sombra salgada. E, pegando ternamente na mão do neto, lá foram, devagar, deixando os passos marcados na areia.
Não dera conta de que o mar parou por uns momentos o seu incansável e secular marulhar, para contemplar, embevecido, aqueles dois vultos que se afastavam.
Por: Peciscas
Quem me dera ser ainda ontem
Lembro os anos da infância como se fossem hoje. E sinto-me menino ainda. É estranho dizê-lo, ninguém compreende esta sensação de apetecer deitar na areia, de rebolar até sentir tontura e olhar os cavalos marinhos desenhados nas nuvens. Ou o risco de um avião que passa rumo ao outro lado do mar. Como se fosse hoje.
Aqui estou de corpo ainda meu mas já mal comandado.
Quem me dera ser ainda ontem e estar assim como tu, menino meu, acocorado a sonhar formas nos desenhos que as mãos deixam na areia solta.
Sonha. O tempo é teu.
Por: Palavras em Linha
Já sem o fulgor da mocidade remexo a areia, tão fina, tão agradável, pisada ao longo dos anos.Há silêncios que valem por mil palavras e os meus percorrem os trilhos sonantes de outras eras, onde relembro o tempo que não tive para o teu pai...e hoje sobra-me tanto tempo! Revejo-o em ti... gostas da praia, assentas-te e ris como ele, dás asas à imaginação como ele... e...e...
- Avô, avôzinho...que tás a fazer?
- Um buraquinho, gostas?
- Eu gosto mas vai ser grande?
- Não é preciso, porque mesmo neste pequenino...olha esta conchinha, gostas?
- Gosto bô, mas faz-me um desenho!
- Desenho?
- Sim bô faz um mas com os teus dedos!
Calmamente e ternamente, o passado e o futuro, entrelaçam sentimentos feitos de gestos num areal qualquer, d'uma praia qualquer, aquecidospelo calor da vida, desenhando vivências e sonhos de um prolongar de gerações.
Por: Fatyly
...e o barco girava, e subia e descia naquelas cristas turbulentas, e os homens rezavam Avé Marias e Pai Nossos.
- E tu não tiveste medo avô?
Tive, muito medo mesmo, e só ele me deu forças para conseguir lutar contra o mar, quando já não se tem nada a perder, e sabemos que a alma está salva. O Zé da Tia, estava atado a uma corda, e no meio de uma onda que cobriu o barco, foi lançado borda fora e ficou suspenso de cabeça para baixo a bater contra o barco ao sabor das ondas.
- Então a seguir o avô puxou-o e salvou-o não foi?...
Infelizmente não foi assim, não podia largar o leme e por em perigo a vida de 8 homens para tentar salvar a de um só, os demais mal conseguiam agarrar-se à vida no meio de tamanha tempestade. Quando o Manel “Chupa Rolhas” conseguiu chegar à corda, ela jazia pendurada, sem já nada segurar, nem a vã esperança de ele se salvar naquele inferno...o corpo nunca foi encontrado, e nós salvámo-nos sem saber como, contra a fúria do mar só tínhamos orações, e usámo-las, não sei se foi por isso, mas o Zé era o único que não tinha fé...
- Então temos todos de ser católicos, é avô?
- Não, João, só temos de ter Fé em algo, seja no que for, naquela força que nos torna mais fortes que a própria morte.
- Podemos ter fé em nós?
- Claro que sim, sobretudo devemos ter fé em nós...
Por: Ivamarle
Como é breve a vida….
Lembro-me como se de ontem se tratasse, do dia em que, após mais uma saída apressada da minha mãe, que dava aulas na escola primária, fiquei com o Avô, aquele mágico ser – pelo menos aos meus olhos – que me contava histórias de encantar, lindas, longas, umas inventadas, outras não e que enchia o meu imaginário de aventuras e de criaturas aladas… Nunca era monótono ficar consigo, e entre brincadeiras, passeios e jogos, íamo-nos conhecendo mutuamente enquanto eu crescia…
Nesse dia, fomos até à praia. Corri, brinquei com outras crianças, construí castelos de areia… Até que só restávamos nós dois no imenso areal. Eu, com o meu egoísmo de criança, teimava em continuar a brincar, por isso corria à sua frente, que só a custo conseguia seguir-me. Isso dava-me uma sensação cada vez maior de vitória, até que apanhei o meu primeiro grande susto…O Avô caiu!
Aguardei um pouco, a ver se se levantava, porém, como tardasse, resolvi voltar à sua beira na esperança de que nada se passasse e fosse apenas uma partida... Mas não era, e apercebi-me disso mal vislumbrei a palidez da sua face. Custava-lhe a respirar, no entanto, após uns minutos de repouso recuperou o fôlego e foi então que, deitado ao meu lado tentou sossegar-me, dizendo que apesar da sua idade ainda viveria longos anos. Explicou-me a efemeridade da vida, através de palavras doces e coloridas, mas transmitindo-me a ideia de que na sua idade já não possuía o vigor da infância, pelo que teria que ser eu a abrandar um pouco o ritmo e acompanhá-lo. Foi nesse dia que percebi que poderia perdê-lo um dia, e decidi adiá-lo o mais possível, conservando durante décadas o meu companheiro de brincadeira.
Por: Elis
- Chico, levas o Manelinho a passear?
- Posso? Caramba! Desta vez não foi preciso suplicar! Levo sim, Maria.
O Manelinho, nos seus quase três anos, cirandava atento à conversa deles. A mãe não a via há uns dias e o pai andava sempre correndo quase não lhe dando atenção. Sorria só de pensar na mão dele entre a mão do avô Chico, que acertava o passo dele pelo seu passo. Os dois devagarinho. Num dia de sol como aquele, decerto que o passeio seria à praia. Como ele gostava das corridas que faziam! O avô caía sempre fazendo-o cair por cima dele, uma, duas, três vezes, até ficarem os dois cansados e rindo. Depois sentavam-se ou deitavam-se na areia e o avô contava histórias em que também se riam. Histórias de mar, de peixes. Manelinho sabia que o avô inventava.
A avó colocou-lhe o boné de ganga azul, ajustando bem a pala sobre a franja. Mal sabia ela que, ao virar da esquina, o avô, e começavam já aí a rir, virava o boné “ao contrário”, “à reguila”, como ele dizia.
Enquanto a avó lhe colocava o boné e dava as últimas, e muitas, instruções ao avô, Manelinho viu a fotografia em que o avô estava estendido na areia. Lembrou-se que naquela manhã, o avô fez muitos riscos na areia com uma pedra castanha que apanhara na babuja de água. Lembrou-se que falou o devagarinho e com palavras que lhe faziam cócegas e lhe davam vontade de chorar. Ele, Manelinho, sabia que eram palavras sobre a sua mãe, mas ainda hoje não percebia. Não perguntava nada porque via que o avô quando falou, nesse dia, tinha uma cara séria e triste. Nesse dia, em que o pai estivera com eles na praia e tirara aquela fotografia.
Por: Seila
E vais contar-me outra vez aquela história de quando andavas no mar, avô? Lembro-me quando me levaste a ver o teu barco. Que grande era o teu barco preto, avô. E tinha aqueles lençóis muito brancos no teu quarto a que não chamavas quarto; e uma janela redonda que só dava para o mar. Conta-me como era, avô. Lembravas-te de mim quando estavas no mar? E, agora, aqui na praia, contas grãos de areia como se fossem ilhas e as ondas como se fosse o ir e voltar?
Conta-me a história de como tens saudades do mar...
Por: Hipatia
O Arrais
- Avô, conta-me a história do teu avô.
- O que era arrais?
- Aquela em versos!
- As histórias nunca se contam da mesma maneira. É como os sulcos na areia, não há dois iguais. Se acordas bem disposto fazes cócegas na areia, se estás de mau humor, afincas-lhe os dedos.- Aquela do avô que se chamava Francisco como eu.
- É uma longa história!
- Tenta. Não que se usassem muito os grandes nomes___ mas vai daí, talvez por ser um homem muito alto e encorpado,coisa também rara para a época, era uso lhe chamarem de Francisco Xavier. O arrais!
Mestre de barcos de fundo chato, esculpido, bordador das redes com que enchia o barco e que depois lançava às águas. Era rico, muito áspero, rigoroso, um tanto bruto mas generoso. O arrais!
De família dizia-se parco. Uma mulher fraca, doente, Rosa de nome mas pálida de cara, e um único filho a que chamou Abel, na esperança de um dia vir a ter um Caim. (Que não era de brigas ou de mortes. Era de crenças e de lemas. E que um homem deve invejar para ser maior.)Mas assim não quis a sorte.
- Avô, isso são versos?
- Isto são sulcos na areia!
Aos amigos emprestava
em momentos de aflição
e na cobrança ao que dizem
não tinha tinha de cão.
Mas à mulher não esquecia
de dizer com mau humor
-se um dia te vais desta
caso-me logo de novo,
compro pronto outra aliança.
Quis a sorte que o futuroo
corresse de outro modo.
À cabeça da xávega em dia de tempestade
bate-lhe uma onda no peito.
Que nunca mais foi o mesmo.
A dor não matou ali para ir matar mais à frente.
Fica a Rosa e o Abel
mais as vozes que lhes dizem
que o Francisco Xavier
é credor de muito ouro.
E cadê dos passeantes?
Quis a sorte que o Abel
descobrisse por acaso
no virar de um velho quadro
dez mil reis empoeirados.
Vende a xávega do pai.
Compra terras de lavoura.
Outra história se seguiu
mas essa guardo-a pra mim.
Quis a sorte que o Abel
tivesse um filho Manuel
e esse, meu caro neto,
foi o pai que me serviu.
- Acabou?
- Acabou.
- Faz mais cócegas na areia...
P.S. : Esta história foi-me contada pelo meu pai, que a ouviu ao pai dele. Eu devo ser trineta do Francisco Xavier, o arrais :))
Por: MRF
Miragem
Tozé, tenho que reconhecer que esta foto não me diz nada. Um velho e uma criança na areia de uma praia, desenhando ao mesmo tempo um futuro e um passado, ambos errados, ambos querendo acima de tudo brincar. Pois, não me diz nada a fotografia.
Talvez o desenho, sobre a areia, de geografias novas. Talvez uma ocasião exacta em que alguém ainda ensina e alguém ainda aprende. Talvez uma magia que prende o olhar orgânico mas não engana a máquina. Talvez o vazio do ser, subitamente preenchido por um milagre.
Não, não me diz nada.
Porque se quisermos ver a imagem com uma certa frieza, e os tempos são propícios a não nos lembrarmos do calor próprio das coisas, areais imensos, anos acumulados e expectativas é o que mais há por aí. E sabemos como tudo isso é vão, deslavado, irreal.
O que eu vejo nesta fotografia, embora possa estar completamente enganado, é um olhar que parece querer trespassar o mundo com uma atenção que me comove. Porque há esta questão que, talvez erradamente, me parece esquecida: atrás da zona luminosa que atrevidamente é captada, roubada portanto da realidade instantânea que o tempo permite, está um olhar.
E hoje, ao olhar para esta foto que no sentido directo não me diz nada, não pude deixar de me colocar no lá atrás onde, no difícil papel de ausente que se perde sempre e se esquece e se reduz, pode ser referido um acaso, uma oportunidade, um rasgo, enfim alguém que no momento exacto que a memória reteve soube carregar no botão do sentido.
E por isso é estranho que uma imagem limpa e límpida a que recusei audácia, traga afinal uma carga de beleza e reflexo que põe na objectiva um pensamento e no obturador o sentir.
Talvez eu esteja enganado. Talvez não passe de uma miragem.
Por: Zumbido
O Avô João
Quando arrumava aquela gaveta, entre o espólio das minhas recordações encontrei esta foto e detive-me a olhá-la.
Eu era criança e estava na praia com o meu avô João. As recordações dos momentos mais felizes da minha vida estão todas ligadas a esse fiel companheiro das minhas brincadeiras e aventuras. Sempre disponível, sorridente e com uma paciência enorme para responder a todas as minhas perguntas: "Avô, de que é feita a areia?".
E construía castelos onde habitavam gigantes. Castelos que caíam derrubados pelo embate das ondas... E eu ria!...
E eu não sabia que a vida é como a areia que escorre por entre os nossos dedos e que os nossos sonhos são desfeitos pelo desgaste do tempo ou pela maldade de quem não gosta de nos ver sonhar...
Avô João, tu sabias e não me disseste porque ainda não era tempo... Mas agora o tempo chegou...
Que falta me fazes, avô João!...
Por Nokinhas
A tarde morna de outono, pousava no areal, como o cansaço pousa na vida, quando um dia, ela deixa de ser florida como as primaveras...
O menino se ocupa árduamente da magia do momento que divide com aquele que tem sido uma grande companhia: o avô.
De repente, apanhando um punhado de areia nas mãos em conchas, sua aguçada curiosidade vem à tona, e ele pergunta, com grande paixão depositada na sua dúvida:
-Vovô... quantos grãos de areia eu tenho aqui na minha mão?
O bondoso ancião chega a se emocionar, pela credibilidade que lhe é devotada pelo neto, e após alguns instantes de indecisão, responde:
- Querido Neto, algumas perguntas em nossa vida, não possuem respostas. Fisicamente, até seria possível descobrirmos, mas não é importante. O importante realmente, é estarmos aqui, sobre a areia, com a nossa memória registrando esse momento que estamos vivendo. _ ao que o garoto respondeu:
- Ah sim, eu entendi vovô. E a minha memória está com problema para registrar o quanto eu gosto de você, porque parece que é mais vezes do que esse punhado de grãos de areia...
Por: Tere Penhabe
**OS COMPINCHAS**
Boa tarde, vizinhos!...Vocês já viram o meu puto reguila?
É, sim senhores, é o meu neto! Este puto é a minha perdição... Para onde eu vou, lá vai ele! Até parece a minha sombra, o malandreco! E as perguntas que o gajo me faz?
-"Avô, o que é isto? - Avô, para que serve?"
Mas há lá coisa melhor para ocupar os meus tempos de reformado? A gente até se esquece das agruras da vida e volta a ser catraio outra vez! Sério... Às vezes nem sei quem é pior: se ele ou eu!
A minha Diólinda, essa passa a vida a ralhar: "Adérito!!! Ó homem, já cagaste as calças todas outra vez! Isto é que é uma vida!".
Mas eu quero lá saber... Ela também é maluca pelo miúdo... Aquilo é só garganta! Tomara ela lavar muitas calças e ter de nos aturar todos os dias!... Ahahahahah!
O quê?... O que é que queres, pá?...
Este rapaz dá-me cabo do miolo, mas é muito giro...
Lá está o gajo a chamar-me! Tenho de ir!
Até mais logo, vizinhos!
Por: A Minha Vizinha
A borracha do mar
As crianças desenham o futuro na areia das praias, onde nós já desenhamos o passado. A areia é a tela do tempo que o mar limpa e renova de branco, indiferente a quem lhe põe as mãos ou os dedos, em histórias ou desenhos mais ou menos abstractos. E não logremos ler-lhe amanhã o que escrevemos ontem, porque é sensata a borracha das águas que tudo leva. Como é sensato não lermos nas crianças o que não fomos. Esta é a lição do presente. Do único tempo que temos para desenharmos a vida. Esta é a lição do velho à criança que lhe pede histórias antigas. As verdadeiras histórias repetem-se e apagam-se para que possam se repetidas. Não há datas que se ponham nas histórias verdadeiras já que são intemporais. É a presença das mesmas escarpas que prova o que o digo. A secularidade do mar único que atesta da relatividade dos múltiplos planos que fazemos. Como a areia está para as crianças estão os velhos para o mar. É circular a existência. Pega-se no velho e vê-se a criança. Olha-se o mar e percebe-se porque ele nos apaga os fragmentos. E quando deitados lado a lado, o tempo que é e o tempo que foi, há um só tempo. Um só momento de verdade que não adianta escrever já que eternamente se repete numa praia qualquer.
Por: Bastet
Um café uma nata
Um café e uma nata. Olga nunca tocou um amigo na intimidade, e estabelece mentalmente um paralelismo entre a sua vida e o pequeno-almoço. Acabou de ler o jornal e ficou a saber que dois adolescentes foram presos por espancarem um pedinte na manhã anterior, que o preço da gasolina vai aumentar sete por cento no mês seguinte, que uma florista foi violada dentro da própria loja por alguém que comprava flores para o funeral dum familiar. Um café e uma nata. Olga vive num dos bairros decadentes dos subúrbios da cidade, e hoje percorreu as ruas daquele cemitério com a sensação que a espreitavam por trás das cortinas sujas de cada janela. Por isso ainda analisa discretamente o seu ténue reflexo no balcão da pastelaria, a ver se está tudo bem. Não sabe o que é estar tudo bem, mas sabe certamente ver se está tudo bem, pensa rindo para dentro. Um café e uma nata.Lá fora um homem escreveu no que sobrou duma caixa de cartão, com o escasso negrume duma esferográfica em fim de vida, que plastifica documentos. Mas não, não plastifica. Está estátua e foi a manhã que o plastificou a ele esculpindo-lhe ausência na face. A quietude dos seus olhos adormeceu noutro homem que amontoa cartão velho num carrinho de mão. Já não plastifica nada há vários dias, talvez também ele devesse colher cartão para vender.Um café e uma nata. Olga sabe que talvez amanhã. Há uns dias foi ao cinema com Artur e ele adormeceu encostado ao seu ombro. Ela petrificou o corpo e o coração para não o acordar. Para não explodir também, mas de vez em quando levantava o braço do lado oposto para ajustar os óculos ao nariz. Não se lembra qual era o filme, mas lembra-se que ele cheirava bem, que lhe agradeceu a noite com um obrigado e um beijo na testa. Na testa, foda-se. Só na testa. Depois foram a um café que ainda tinha a porta entreaberta àquela hora da noite e ela bebeu um café e comeu uma nata. Ele bebeu uma água tónica. Depois não fizeram amor, mas Artur esperou lá em baixo que ela subisse e lhe viesse dizer adeus à janela. Depois seguiu devagarinho pelo passeio até ser engolido pela noite. Um café, uma nata, um número de telefone num bilhete de cinema, saber que ele era empregado de escritório e um lençol frio, foi tudo o que restou dessa noite.O homem que plastifica documentos tem um rádio rouco. Entra com ele ligado no café e apoia-se no balcão. O rádio canta o “Love Generation”, de Bob Sinclair. Ninguém se incomoda. Pergunta quanto custa um croissant, apontando-o. Noventa, responde-lhe uma voz impaciente, e ele torna a sair e a sentar-se na mesinha do passeio. Não levou o croissant, mas levou o olhar de Olga que ainda esvoaçou pelo resto dos clientes como uma borboleta excitada. Numa mesa uma mulher ancorou o olhar nas flores de plástico da parede, e repete para dentro que são de plástico: são de plástico, são de plástico. Olga reconhece-a do jornal mas volta ao homem. Compra e leva-lhe lá fora um croissant e um leite com chocolate. Ele agradece, que talvez ela queira plastificar qualquer coisa, diz. Que sim. Olga tira uma fotografia da carteira. Que era o avô dela na praia com o irmão, há muitos anos. Se tudo correr bem hoje, quer mostrar a fotografia a um amigo, depois de uma sessão de cinema. Plastificada dura mais. Boa sorte com o amigo, diz-lhe o homem.Olga entra e paga. Um café e uma nata. A mulher ainda repete que as flores são de plástico. Boa sorte, engole Olga.
Por: Ivar
AI MEU NETO!
Olho para este catraio e penso como fui um garoto como ele e como me transformei no que estou agora… velho, viúvo, cheio de rugas, sem ilusões e a tomar conta do meu neto…
Recordo-me da Rosa! Ai se a Margarida tivesse sabido… nunca me teria perdoado…
- Pois é Pedrinho! Ainda não entendes nada da vida. Para ti essa areia com que brincas é um mundo. É um ror de pensamentos, tantos como os grãos que te enchem as mãos… mas o avô… ai o avô foi um louco…
Estou para aqui a fazer rabiscos na areia enquanto entretenho o Pedrinho e à memória só me vêm pensamentos de outros tempos… dos meus quarenta e tais… e aquela Rosa… como era bom rolarmos na areia até nos enrolarmos um no outro, numa fúria desenfreada de sexo, na praia e ao luar…
- Isto, tu não ouviste, Pedrinho… o avô conta a história da conchinha dourada… Vamos procurar uma conchinha e o avô depois conta…
Como poderia contar a uma criancinha tão pequena e inocente os desvarios de um avô cheio de galanteria para as jovens que conhecia, nos seus anos quarenta e tais… e avó Margarida, poderias perguntar… e eu teria de dizer que nunca desconfiou de nada, porque era fria e não me acarinhava como tanto necessitava, depois de horas a fio naquele escritório, cheio de maquetas e projectos… e meu netinho, sempre a tratei como devia um verdadeiro cavalheiro tratar uma senhora… porque a tua avó Margarida, era a senhora que eu mais considerava, mas não como a esposa que eu gostaria de ter tido… e não voltei a casar, porque mais ninguém poderia substituir o seu lugar, até porque a Rosa dos meus amores, também partiu cedo demais…
- Vá Pedrinho! Não ponhas as mãos na cara. A areia pode ir para os teus olhinhos e faz dói-dói. Já encontraste a conchinha?...
Por: Isabel
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